segunda-feira, 17 de maio de 2010

MARAVILHAMENTO


O objectivo último do Zen é aquilo que é conhecido como Satori em Japonês, e Sambodhi – ou abhisamaya em Sânscrito. Isto é: iluminação, como ensinava Daisetz Suzuki.

A palavra abhisamaya terá surgido da fusão dos termos Sânscritos abhyasa e maya. O primeiro designa aquilo que poderíamos dizer como método, exercício, aplicação prática.

Maya, tão frequente e vulgarmente usada no Ocidente, significa literalmente aquela que mede. A partícula *ma, tem sua origem no Indo Europeu, e indicava os conceitos de mãe, de matéria, de matriz.

Essa partícula Indo Europeia também implicava a ideia de energia criativa, impulso criativo e, num certo sentido, também a noção de descoberta, de insight.

Vulgarmente traduzida por ilusão, o termo maya originalmente tem o significado de energia criativa. Apenas depois, alguns milhares de anos após a sua criação, com a tradição Vedanta, por volta do século VIII, é que maya passa a significar ilusão.

Mas há uma estreita ligação entre as duas significações – relançando-nos directamente à raiz Indo Europeia.

O que é aquilo que percebemos no tempo e no espaço senão pura ilusão?

Mas, para percebermos qualquer coisa é necessário existir o impulso da descoberta, sem o qual não há o maravilhamento.

Como não lembrar Sócrates ao defender que a base da filosofia é o maravilhamento?
Essa é a natureza primeira da criança, da invenção e da estética.

Assim, abhisamaya, ou iluminação, significa na sua essência exercício do impulso criativo.

Joseph Beuys percebeu que era isso o que acontecia.

Resgatou na religião dois elementos que revelariam a sua arte. Dois elementos formadores da própria ideia de religião – a antiga matriz Latina religare e a posterior expressão medieval relegere. Daquela, Beuys resgatou da Natureza, enquanto processo, a ideia de ilusão na percepção – palavra que surge do Latim ludus, e que significa etimologicamente contra jogo – mas também a ideia de impulso criativo.

É aqui que surge o conceito de Natureza ao nível antropológico. Uma volta pelo avesso através da própria cultura.

Com a segunda expressão Latina, relegere, Beuys se lançou ao método, ao exercício do fazer, da acção.

Um percurso que ilumina a natureza daquilo a que chamamos de arte, no final do segundo milénio.

A ilusão, o contra jogo, a crítica da cultura, estabelecida pelo maravilhamento da descoberta.

A obra de Beuys ultrapassa em muito a ideia de objecto, de evento fechado no tempo e no espaço.

Ela opera o processo enquanto uma complexa trama de relações.

Assim, ela se desmaterializa – mas, ultrapassando o nível da arte conceptual.

Não se trata de uma obra literária, no sentido de se estabelecer no universo simbólico, um universo de conteúdos, de símbolos.

Ela implica uma diferente estratégia de organização das coisas.

Ilusão e iluminação, maravilhamento e exercício do impulso criativo, relegere e religare.

E, como não pode estar presa no tempo e no espaço, ela já não pode ser mais exclusivamente Joseph Beuys, mas é um pouco de todos nós.

Toda essa viagem de pensamento – e todas essas ideias – poderia ser aplicada a qualquer grande artista Ocidental, de qualquer época, em qualquer lugar.

Por isso, trata-se de uma questão antropológica segundo a qual o impulso criativo nunca poderia ser propriedade exclusiva de alguém.

Tal como acontece com a música, pois os sons, como as ideias, não podem ser guardadas num cofre.

Beuys, como John Cage, como Satie ou como Merce Cunningham entre muitos outros, aproximaram arte e música, no caminho da iluminação.

Num antigo koan do século XII, Tai-Hui questionava apontando para uma pequena vareta de bambú: “Se alguém disser que isto é uma vareta, será uma afirmação. Se se disser que não é uma vareta, será uma negação. Além da afirmação e da negação, como poderíamos chamar a isto?”.

Maya!


Emanuel Dimas Pimenta

Sobre Joseph Beuys

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